Justiça fiscal ou guerra de desgaste? O caso da Galp em Moçambique

A venda de 10% da participação da Galp à empresa XRG P.J.S.C. (um veículo operativo da petrolífera estatal dos Emirados Árabes Unidos, ADNOC), na Área 4 da Bacia do Rovuma, concluída em Março de 2025, despoletou uma disputa fiscal que testa a soberania económica de Moçambique e a responsabilidade de um dos maiores investidores estrangeiros no país. A Autoridade Tributária (AT) notificou a petrolífera para o pagamento de um imposto sobre as mais-valias no valor de 162 milhões de euros, equivalente a 12 biliões de meticais, um montante sobre o qual a própria Galp confirma ter sido notificada no seu relatório oficial aos accionistas. Este valor resulta da aplicação da taxa efectiva de 17,6%, prevista no regime fiscal petrolífero moçambicano, a uma mais-valia estimada pela AT em cerca de 920 milhões de euros.

Em flagrante contraste, a Galp contesta a liquidação alegando uma mais-valia tributável de apenas 26 milhões de euros, um valor 35 vezes inferior ao calculado pela AT. A posição da Galp é ainda mais questionável quando, no mesmo período, a empresa reporta aos seus accionistas um ganho contabilístico de 147 milhões de euros com a mesma transacção, evidenciando uma gritante inconsistência entre o que declara ao fisco e o que comunica aos seus investidores.

A decisão da Galp de recorrer à arbitragem internacional, no ICSID Banco Mundial, previsivelmente com base numa cláusula de estabilização do Contrato de Concessão de 2007, representa uma táctica conhecida como “guerra de desgaste”. Esta estratégia visa explorar a profunda assimetria de poder financeiro entre a empresa e o Estado moçambicano, forçando o país a aceitar um acordo desfavorável para evitar custos legais exorbitantes, estimados de forma conservadora entre 6 e 8 milhões de dólares. Estes custos representam entre 3,4% e 4,6% do valor total do imposto devido.

Este relatório analisa a arquitectura da transacção, a robustez da base legal moçambicana e a provável estratégia de litigância da Galp. Conclui-se que a posição de Moçambique é legalmente sólida e alinhada com as melhores práticas internacionais de combate à erosão fiscal, ou seja, à redução da base tributária através de esquemas de elisão fiscal abusiva. No entanto, a capacidade do país para fazer valer os seus direitos soberanos exige uma resposta firme do Estado, um escrutínio atento da sociedade civil e uma actuação responsável dos parceiros internacionais, incluindo o Estado português que é accionista de referência da Galp.

O relatório do Centro de Integridade Pública (CIP), conclui que a disputa entre Moçambique e a Galp ultrapassa em muito os 162 milhões de euros que lhe deram origem. Este é um teste crucial à capacidade de um Estado do Sul Global exercer a sua soberania fiscal face a uma multinacional com acesso privilegiado a mecanismos de blindagem contratual e conhecedor das regras de jogo do campo de arbitragem internacional, para o qual Moçambique será forçado a entrar como um jogador principiante. Por um lado, a base legal moçambicana é sólida, fundamentada em normas anti-abuso e alinhada com boas práticas internacionais. A tentativa da Galp de invocar uma cláusula de estabilização para escapar a esse quadro representa uma distorção grave do espírito desses contractos.

Por outro lado, a fragilidade institucional moçambicana no controlo e na certificação de custos é também parte do problema. A disputa não é apenas externa, é também interna. A resposta não pode ser puramente jurídica ou técnica. Ela exige mobilização política, responsabilidade empresarial e pressão social sustentada.

Como recomendações, o Governo de Moçambique e Autoridade Tributária em especial:

a) Defender firmemente a posição legal do Estado, com base nas normas anti-abuso e no princípio da tributação sobre a substância económica da transacção;

b) Recusar acordos desfavoráveis motivados por pressão litigiosa, mesmo sob risco de custos processuais, e explorar todas as vias de apoio técnico e jurídico internacional;

c) Reforçar, com urgência, o sistema de certificação e auditoria contínua dos custos no sector extractivo, com base em registos contabilísticos validados desde o início do ciclo de investimento;

d) Publicar, de forma proactiva, as decisões sobre custos base aceites e rejeitados, como medida de transparência preventiva e de justiça fiscal;

e) Promover reformas legais que reduzam espaços de interpretação abusiva, incluindo uma revisão sistemática de cláusulas de estabilização em contractos futuros.

 

Galp Energia, SGPS, S.A.

a) Rever a sua posição jurídica à luz do princípio da boa-fé e das obrigações de responsabilidade fiscal em países de operação;

b) Evitar tácticas de guerra jurídica prolongada que minam a sua reputação e expõem a empresa a risco ESG significativo;

c) Publicar, com total transparência, a base do custo declarado e os critérios de dedução utilizados de forma a permitir escrutínio público e institucional;

d) Assumir uma resolução justa e célere do litígio que reflicta o verdadeiro valor económico da transacção e o compromisso com a integridade fiscal.

 

Governo de Portugal (como accionista da Galp-7,48%)

a) Exigir à Galp uma actuação fiscal responsável em Moçambique, em conformidade com os compromissos de justiça fiscal assumidos pelo Estado português em fóruns internacionais;

b) Condicionar apoio institucional à Galp à demonstração de práticas tributárias alinhadas com o interesse público, nomeadamente nos PALOP;

c) Utilizar a sua posição como accionista de referência para promover uma solução negociada e transparente, rejeitando litígios que penalizam países parceiros em desenvolvimento.

 

Sociedade Civil Moçambicana e Media Independente

a) Monitorar activamente o desenrolar do processo de arbitragem, exigindo relatórios públicos da AT, do Ministério das Finanças e do MIREME;

b) Lançar campanhas de consciencialização pública sobre o conceito de justiça fiscal, explicando o impacto directo que estes recursos teriam na educação, saúde e infra-estruturas básicas;

c) Pressionar o Governo a reformar os mecanismos de controlo de custos e a publicar os dados da disputa como forma de responsabilização e transparência; e d) Construir alianças regionais e internacionais com outras organizações da sociedade civil para aumentar a pressão pública e política sobre a Galp e o ICSID.

 

Investidores Institucionais e Fundos ESG

a) Questionar publicamente à Galp sobre os riscos reputacionais, financeiros e legais associados a este caso, exigindo disclosure detalhado;

b) Condicionar o investimento futuro à adopção de práticas fiscais transparentes e justas, especialmente em países com elevada vulnerabilidade institucional;

c) Rever a pontuação ESG da Galp, caso a empresa insista numa litigância prolongada, desfasada dos compromissos sociais e ambientais declarados.

 

ICSID e Grupo Banco Mundial

a) Rever criticamente o papel do ICSID em disputas sobre normas fiscais de ordem pública, nomeadamente quando envolvem cláusulas de estabilização; b) Introduzir maior transparência nos custos processuais, honorários e decisões, permitindo o escrutínio público sobre o uso do mecanismo;

c) Adoptar princípios de deferência fiscal (tax carve-out) nas arbitragens envolvendo normas anti-abuso, em linha com propostas de reforma em debate nas Nações Unidas e na OCDE.


Discover more from Jornal Profundus

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Discover more from Jornal Profundus

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading