A máquina repressiva e a banalidade da violência na África lusófona

Por Júnior Rafael

“São cães que têm dono, obedecem a um comando…” – a frase atribuída a Frantz Fanon retracta de forma dura, porém precisa, a condição dos policiais na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Homens e mulheres armados, fardados, obedientes à ordem, mesmo quando essa ordem os coloca contra o próprio povo. Muitos deles vivem à margem da dignidade: sem teto, sem salários dignos, privados de saúde mental e física. Ainda assim, marcham. Atiram. Reprimem. Não contra o inimigo da soberania, mas contra o povo empobrecido que ousa gritar por pão, justiça e liberdade.

Este fenómeno precisa ser examinado com lentes filosóficas e políticas. Em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt nos oferece uma chave de leitura. Segundo ela, regimes totalitários não se sustentam apenas pela figura de um tirano ou pela força de um partido, mas pela normalização da obediência cega, pela desumanização do outro e pela banalização da violência como prática cotidiana do Estado.

É exactamente o que vemos em certos contextos africanos hoje. A repressão de protestos em Angola contra o aumento dos combustíveis, a violência policial em bairros pobres de Maputo, ou a brutalidade em Bissau contra manifestantes políticos – não são actos isolados, mas partes de um sistema de dominação que transforma os agentes da lei em peças de uma engrenagem autoritária.

Arendt nos alerta: o totalitarismo precisa de massas atomizadas, ou seja, indivíduos isolados, amedrontados, incapazes de se unir. E quem melhor para garantir esse isolamento do que os próprios policiais? É a face mais cruel da manipulação estatal: transformar os explorados em guardiões da exploração.

No entanto, essa dominação não é apenas externa. O regime penetra também a subjectividade desses agentes. Muitos não percebem o quanto estão alienados do próprio poder. Foram convencidos de que sua missão é “garantir a ordem”, mas nunca lhes foi permitido reflectir sobre a quem serve essa ordem, e a que custo ela é mantida. Como Arendt escreve, no totalitarismo, a responsabilidade individual se dissolve: o policial apenas “cumpre ordens”. A consciência se anula.

Mas o problema não é apenas dos policiais. É estrutural. A herança colonial, longe de ter sido superada, foi reconfigurada em formas de autoritarismo pós-independência. As elites que hoje governam muitos países africanos reproduzem os mesmos mecanismos de vigilância, repressão e exclusão que antes serviam ao império colonial. O resultado é um Estado que teme seu próprio povo – e que responde com pancadas, gás lacrimogéneo e tiros às exigências legítimas por dignidade.

O mais trágico é que esses policiais também são vítimas. São filhos da pobreza, da má educação pública, da escassez de políticas sociais. Dormem mal, comem pouco, vivem com medo. Estão no limite. E ainda assim, carregam a arma do opressor. Como nos alerta Fanon, o colonialismo não apenas dominou territórios, mas moldou subjectividades. E essas subjectividades continuam colonizadas, mesmo quando vestem o uniforme do Estado-nação.

O que fazer, então? Primeiro, é preciso romper o silêncio. Denunciar os abusos, mas também promover uma educação política entre os próprios agentes de segurança. Mostrar que o povo não é inimigo, mas irmão. Que obedecer ordens injustas é também uma forma de violência contra si mesmo.

Segundo, é urgente desmilitarizar o olhar sobre o social. O Estado não pode continuar tratando o protesto como ameaça, o cidadão como alvo, o grito como crime. Como escreveu Arendt, a força não pode substituir a política. Onde há coerção, não há liberdade; e onde não há liberdade, a tirania floresce.

Contudo, é preciso apontar para a responsabilidade moral individual. Nenhuma farda, nenhum cargo, nenhuma ordem deve apagar a consciência de que há limites éticos. Um policial que atira em seu povo não é neutro: ele escolheu um lado. E quando esse lado é o da repressão, ele se torna cúmplice do sistema que o oprime.

A história cobrará esse silêncio. A memória dos povos feridos há-de despertar. E nesse dia, talvez, os “cães com dono” redescubram que são humanos – e que a verdadeira ordem é aquela construída com justiça e não com medo.

 


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