O Conselho Constitucional moçambicano, com toda sua toga e formalidade, acaba de dar à luz uma criatura jurídica peculiar: um nado institucional com ambliopia democrática — baptizado, com ironia, de Anamalala. Nasceu de uma cesariana tardia, produto de um parto judicial forçado, e já veio ao mundo em coma induzido. O que deveria ser a manifestação do primado do direito virou um retracto da inoperância legal travestida de tecnicismo.
O documento recentemente divulgado, parte do Acórdão n.º 3/CC/2025, revela mais do que uma simples decisão jurídica. Ele desnuda o funcionamento moroso e omisso de um Estado que se esquiva de responder às demandas dos cidadãos — neste caso, o pedido de constituição de um partido político. O silêncio da administração pública, aqui justificado como “indeferimento tácito”, não é só uma abstracção legal: é o próprio Estado virando as costas à cidadania.
A decisão articula um paradoxo inquietante: ao mesmo tempo que reconhece a omissão do Ministério da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, usa essa mesma omissão como base para julgar improcedente o recurso dos recorrentes. A jurisprudência foi transformada em um labirinto onde quem entra buscando justiça encontra apenas paredes de tecnicalidades e prazos que se contradizem. O Estado, em vez de responder com clareza, escolhe calar — e o Conselho, ao invés de exigir a resposta, homologa o silêncio.
Esse “Anamalala” — nome que evoca a fragilidade de um bebé prematuro e vulnerável — simboliza o que se tornou a legalidade em Moçambique: um organismo vivo, mas sem visão, sem firmeza, sem orientação democrática. Um nado cego lançado num oceano de arbitrariedades.
Essa prática institucionalizada do “indeferimento tácito”, embora prevista legalmente, deveria ser excepção, não regra. Sua utilização como ferramenta política para evitar decisões impopulares ou polémicas enfraquece o próprio espírito da Constituição. A democracia exige coragem institucional. Exige decisões. Exige transparência.
Mais do que um parecer, o acórdão é um espelho. Nele, vemos reflectida a imagem de um país em que o direito de associação política é negado não por argumentos substantivos, mas pela inércia administrativa e pela conivência judicial. Um país onde a cidadania é respondida com silêncio e o silêncio é institucionalizado como norma.
A ambliopia do “Anamalala” é, portanto, simbólica. Representa a visão turva que as instituições têm da própria democracia. Cabe agora à sociedade civil abrir os olhos e exigir não apenas decisões, mas decisões justas, claras e corajosas. A democracia não pode sobreviver se seus próprios guardiões têm medo de falar — ou pior, se fazem do silêncio sua sentença.