O Estado veste terno, mas calça coturno

Na Faria Lima, o Brasil é Suíça. Nenhum helicóptero sobrevoa o asfalto caro, nenhum policial mascarado grita “perdeu!”. Os crimes são discretos, sofisticados, com gravatas de grife e planilhas offshore. Lá, quando o Estado chega, é de terno — e sempre com hora marcada.

Mas nas favelas do Alemão e da Penha, o mesmo Estado troca o terno por coturno. A operação começa ao nascer do sol, termina com o pôr da esperança, e o noticiário chama de “sucesso”. São mais de 130 vidas interrompidas, mas o verbo usado é “neutralizar”. A linguagem também mata — e com menos barulho.

Dizem que é guerra ao tráfio, mas o inimigo nunca tem sobrenome francês nem conta nas Ilhas Cayman. É sempre o menino preto de chinelo, o corpo caído no beco, o sangue escorrendo para o ralo — porque no Brasil até o sangue segue o curso da desigualdade.

Enquanto isso, o mesmo crime organizado que controla a economia não precisa se esconder. Ele patrocina campanhas, financia consultorias, constrói torres de vidro. Chama-se “mercado”. E o mercado é tão poderoso que nem a bala perdida se atreve a atravessar a Marginal Pinheiros.

No Rio, o Estado parece uma empresa de segurança terceirizada. Protege o que tem valor de mercado e elimina o que não tem. A cada operação, uma estatística nova; a cada corpo, uma justificativa antiga. Chama-se “segurança pública”, mas soa mais como “higienização social”.

Talvez devêssemos parar de chamar essas chacinas de tragédias. Tragédia tem destino e acaso; aqui há método e endereço certo. E como lembrou alguém lúcido, quando o CEP é nobre, o Estado negocia; quando é favela, ele executa.

O Brasil é um país onde o mapa da violência coincide com o mapa da pobreza. Onde a cor define o calibre que te alcança. Onde a vida vale menos que a manchete. E, no fim, os mesmos que mandam atirar posam de gestores da ordem, com discursos sobre meritocracia e “cidadão de bem”.

Enquanto isso, nas vielas de um país partido, mães choram filhos que nunca tiveram chance de ser suspeitos de colarinho branco.

Essa é a falência do Rio — e, por tabela, do Brasil: um Estado que se acha civilizado demais para o diálogo e bárbaro demais para a justiça.

 


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