Os bispos moçambicanos merecem reconhecimento — não apenas pela cartilha que escreveram, mas pela coragem de voltar a dizer o óbvio…
Há tempos que Moçambique vive entre o murmúrio e o silêncio. O murmúrio do povo cansado e o silêncio das instituições que deveriam protegê-lo. Quando a fome invade as casas, quando a violência política sufoca a esperança e quando o jovem já não crê nas promessas que se repetem, resta pouco espaço para o diálogo. É nesse vazio que a Igreja Católica reaparece, não apenas como templo, mas como consciência — e lança a Cartilha Política para o Diálogo Nacional, um documento que pede mais do que palavras: pede coragem.
A Igreja, que tantas vezes foi refúgio espiritual, agora propõe-se a ser também farol cívico. A sua voz, que durante algum tempo pareceu discreta, emerge com força num país em que a fé convive com a fome e a crença se mistura ao desencanto. Com esta cartilha, os bispos desafiam o povo moçambicano a repensar o destino da nação — não como súbditos, mas como cidadãos.
Há algo de profundamente simbólico neste gesto. Quando o púlpito se transforma em tribuna moral, a palavra litúrgica ganha contorno político — não partidário, mas ético. A Igreja lembra que a democracia é vazia se o cidadão continua invisível, e que a paz é frágil se não cura as feridas da injustiça. A sua mensagem é clara: o Evangelho que não desce à rua e não se mistura ao pó das aldeias é apenas retórica sagrada.
No coração do documento está a provocação mais necessária de todas: colocar o ser humano no centro das decisões políticas. Um país que mede o sucesso em cifras, mas ignora o sofrimento real, adoece em sua alma. E quando o lucro fala mais alto que a vida, é a moral que empobrece. A Igreja, nesse ponto, faz o papel que o Estado esqueceu — lembra que o poder é serviço, e que a economia, se não é humana, é desumana.
Mas há também autocrítica implícita. Ao levantar-se agora, a Igreja parece reconhecer que demorou a reagir quando o sangue dos manifestantes manchou as ruas e o medo tomou as praças. Essa demora, ainda que compreensível, pesou como silêncio cúmplice. Contudo, é justamente por isso que o gesto actual tem força: porque fala depois da pausa, e porque sabe o valor de quebrar o silêncio.
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” — o mandamento de Jesus soa, aqui, como lembrete e desafio. A César, a responsabilidade pelo Estado; a Deus, a inspiração moral que deve guiar os homens. Mas quando César esquece o seu dever, é justo que Deus fale pelos seus profetas — e os bispos, ao erguerem a voz, cumprem esse papel.
Num tempo de desencanto e desconfiança, em que a política se tornou espectáculo e a pobreza rotina, a Igreja Católica oferece o que mais falta: uma convocação à consciência. Pode não mudar tudo, mas reabre o debate, reacende a fé pública e, sobretudo, devolve ao povo o direito de sonhar com um país reconciliado.
Os bispos moçambicanos merecem reconhecimento — não apenas pela cartilha que escreveram, mas pela coragem de voltar a dizer o óbvio: que justiça e fé não se excluem, e que o silêncio diante da dor é a pior das heresias. Que a sua voz ecoe, não como sermão, mas como semente. Porque um país só se reinventa quando ouve, de novo, a voz do seu pastor.
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