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“Quando a vítima é filha alheia ninguém se preocupa” no assédio sexual

Da autoria do Centro de Integridade Pública (CIP), a investigação refere que, em Moçambique, seis em cada 10 estudantes do ensino superior sofrem assédio sexual praticado pelos seus docentes.

O estudo lançado na terça-feira (02.04), em Maputo, refere que a maioria das vítimas não chega a denunciar os casos por temer represálias académicas. O CIP mostra que, entre 2019 e 2022, houve registo de apenas 30 denúncias de assédio sexual em instituições de ensino superior.

No entanto, as poucas estudantes que têm a coragem de denunciar não encontram acolhimento de quem é de direito, acrescenta o estudo, assinalando que os processos acabam arquivados. A título de exemplo, dos 30 casos denunciados entre 2019 e 2022, no país, 50% foram arquivados, indica o estudo intitulado “Quando a vítima é filha alheia ninguém se preocupa”.

Luísa, nome fictício de uma estudante do curso de Engenharia Alimentar, na Universidade Zambeze extensão de Angónia, província de Tete, é uma dessas “filhas alheias” que teve frequentes reprovações em todas as disciplinas leccionadas por um docente que a assedia e faz questão de deixar claro que a única forma de ela passar é aceitar o seu desejo de envolver-se sexualmente com quem devia ser o seu educador.

Luísa concluiu o ensino secundário em 2017, e, não diferente de muitos, fazer parte de uma universidade sempre foi um sonho reservado desde a adolescência. Um sonho que unia gerações pois ter uma filha licenciada sempre foi o desejo de seus pais.

A primeira tentativa de ingressar numa universidade foi em 2018, mas só em 2019 conseguiu ser admitida.

Já na universidade, Luísa não esperava que a atitude de um docente, que no início se comportava como um “pai”, pudesse transformar a imagem que reservava sobre o espaço académico, em apenas três meses. “Eu não sei como começou, qual foi a causa e porque eu. No intervalo de três meses, logo após o início da formação, tive um docente que não sei como teve o meu contacto. Ele já enviava mensagens, primeiro para saber sobre as minhas expectativas no curso, se tinha alguma dificuldade, e eu achava aquilo normal”, contou a estudante.

“No intervalo de três meses, logo após o início da formação (2019), tive um docente que não sei como teve o meu contacto. Ele já enviava mensagens, primeiro para saber sobre as minhas expectativas no curso, se tinha alguma dificuldade, e eu achava aquilo normal”, contou a estudante. Mas não demorou que o docente revelasse as suas verdadeiras intenções: manter relações sexuais com a estudante.

Não precisou de muito tempo para que as conversas do docente começassem a despir-se do teor ético e se revestissem de linguagens que de forma dissimulada tentavam resguardar o seu desejo predatório. “Num certo dia, saindo da universidade, o docente enviou uma mensagem pedindo para que fosse a sua casa lhe ajudar a cozinhar. Eu disse que não podia. Ele me perguntou se eu tinha namorado, se era casada”, relatou Luísa.

Luísa sentiu-se constrangida e a primeira solução encontrada foi bloquear o contacto do docente. Mas o que menos poderia imaginar é que aquela atitude daria início a uma nova realidade no seu percurso académico. A estudante passou a viver num ciclo de reprovações em todas as disciplinas leccionadas por aquele docente. A cada esforço, o docente deixava evidente que, enquanto não fosse satisfeito o seu desejo, Luísa estaria condenada ao fracasso. “Ele dizia aos meus colegas que se eu quisesse passar nas suas disciplinas tinha de me encontrar com ele, dormir com ele”, disse.

“Desde o primeiro ano até agora, tenho reprovado em todas as suas disciplinas. Um curso que terminaria em cinco anos, não sei se irei terminar enquanto ele for docente nesta universidade. Agora estou no 4º ano, mas apenas fiz 24 disciplinas, num total de 48”, exteriorizou Luísa.

Diante desta situação, a aluna apresentou o caso aos pais e, posteriormente, ao director pedagógico da Universidade. Mas, ao invés de resolver o problema, o director pedagógico incentivou a estudante a silenciar o caso, argumentando que casos semelhantes sempre existiram na instituição.

Para o director pedagógico, dependia de a estudante aceitar ou “não” dormir com o docente e passar nas disciplinas. “Ele disse que dependia de mim, como estudante, aceitar, ou não, dormir com o docente e passar nas disciplinas, porque ele falou para mim, ou você faz, ou não faz, eu não posso mudar a forma de pensar de um ser humano, não posso perder um docente por causa de uma estudante”, relembrou Luísa, num olhar distante, mas difícil de alcançar o seu futuro pois o sonho de ser formada no ensino superior prevalece numa incógnita que só o tempo se encarregará de desvendar.

 

Casos denunciados e arquivados

O estudo de 22 páginas expõe que além de Unizambeze em Tete, algumas estudantes que não escaparam do assédio sexual são da UEM, UP, UJC, Uni-Púnguè Chimoio, Uni-Púnguè Tete, Uni-Zambeze Angónia, ISP-Chimoio e UCM.

Das 30 denúncias, 15 terminaram arquivadas, alegadamente por falta de provas, doze (12), por má instrução processual, um (1) e por causas não justificadas (2). Há ainda seis casos em andamento e apenas nove resolvidos.

Na UEM registaram-se 10 denúncias, equivalentes a 33,3% dos casos. Destes casos, quatro foram arquivadas, cinco tiveram desfecho, que culminou com a punição dos implicados, e um está em andamento na Procuradoria Provincial de Inhambane.

Por sua vez, a Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Pedagógica (FEP-UP) registou seis casos de assédio 12 sexual desde que criou o Centro Infantil de Género e Interseccionalidade (CIEGI), em 2019. Há três casos com penalizações para os implicados e outros três arquivados por falta de provas.

A Universidade Púnguè de Chimoio (Uni-Púnguè, Chimoio) registou, igualmente, seis denúncias de assédio sexual, dentre as quais uma foi arquivada por falta de provas e outras cinco estão em andamento.

A Universidade Púnguè de Tete (Uni- Púnguè, Tete) apresentou 10% dos casos. Foram canalizadas três denúncias, duas na Procuradoria Provincial de Tete, e uma na reitoria da instituição.

Na Universidade Joaquim Chissano (UJC) todas as denúncias que entraram foram arquivadas por falta de provas materiais.

Os casos de denúncias com processos arquivados repetem-se por quase todas as instituições de ensino superior. Na Universidade Católica de Moçambique- Chimoio (UCM-Chimoio) há uma denúncia arquivada. Na Universidade Zambeze de Angónia (Uni-Zambeze, Angónia) e no Instituto Superior Politécnico de Chimoio (ISP-Chimoio), há igualmente registo de uma denúncia arquivada por falta de provas, para cada instituição.

A psicóloga Brígida Nhantumbo explica que práticas de assédio sexual no espaço académico são responsáveis por uma série de consequências às vítimas e que afectam o seu desempenho académico. Uma estudante vítima de assédio sexual desenvolve sentimentos de culpa, injustiça, medo, vezes tende a ser agressiva pois está num meio em que poucos acreditam que o assédio existe. A vítima apresenta também dificuldades de se relacionar com outros estudantes, principalmente do sexo oposto – explicou.

Segundo Brígida Nhantumbo, o estágio mais grave do assédio é quando todos estes sentimentos forçam a vítima a abandonar a escola ou mesmo a cometer suicídio., Enfatizou que há urgência em se olhar para este fenómeno com seriedade.

O assédio sexual é crime. O artigo 205 do Código Penal tipifica o assédio sexual como crime contra a liberdade sexual nos seguintes termos: quem, abusando da autoridade que lhe conferem as suas funções ou prevalecendo-se da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, constranger alguém com intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, é punido com a pena de prisão até 2 anos e multa correspondente. (CIP).

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