Fanáticos
Temo-los de diversos tamanhos, calibres, cores e feitios. Temos fanáticos para tudo. Uns o são pela sua religião ou crença. E então todo aquele que não for católico, evangélico, muslim ou espírita como ele é apócrifo.
No “chapa”, os identificamos com facilidade. Basta o motorista bater inadvertidamente num buraco (onde ainda há estrada com buracos e não aqui onde só temos buracos com estrada) e já está a fazer, ostensivamente, o sinal da cruz com aquele trejeito apropriado dos olhos.
Me lembro de alguns dos quais tive o raro privilégio de ser companheiro de viagem no troço Nampula-Moma via Liúpo. Era o percurso menos sujeito aos tiros, quando ainda se tinha que pedir uma guia de marcha para sair do bairro porque ao longo da caminhada, éramos frequentemente parados em Postos de controlo para provarmos ao miliciano que estávamos autorizados a ir visitar um parente doente, a ir passar férias na nossa aldeia ou a levar esposa e filhos para visitarem sogros e avós.
Dizia eu que tive o grande privilégio de viajar com uma estirpe de fanáticos no mesmo camião que levava centenas de sacos de castanha para a fábrica de Angoche. Eles se faziam acompanhar de chaleiras com água. Não era para beber. Mas era para as abluções habituais depois de cada paragem para que pudéssemos aliviar as bexigas e outros esfíncteres. A cada inclinação comprometedora do camião ou a cada sacudidela daquelas em que voávamos com os nossos pertences e voltávamos a pousar no camião a uma velocidade considerável ouvia-se um “La illah!” e o fechar momentâneo dos olhos a completar o ritual.
A outra versão de fanáticos é moderna. Como dizia minha avó: cada maluco com a sua mania. Estes não têm nem sequer meio século. Estes são do fanatismo que fora das chaleiras e sinais da cruz, baseia-se em categorização do semelhante, ou mais concretamente, na colocação do semelhante no compartimento que mais facilmente o pode deixar na sarjeta da vida. De há uns tempos para cá a tendência ganhou espaço e se enraizou com grupos de matadores, de partidores de membros, ou de compatriotas especializados em rotular outros, graças à capacidade que têm de interpretar os mais leves sinais na nossa vida (a semiologia do nosso comportamento). E quando estes sinais são percebidos, os “experts” os canalizam aos centros de processamento de dados. Quando os resultados da análise voltam, aí a coisa pode começar a ficar preta. É depois desse regresso que acontecem os Anastácio Matavel, Giles Cistac só para falar de alguns.
Quando os resultados voltam, acontecem por vezes os aconselhamentos para todos estarem alinhados, sob risco de serem movimentados (os rebeldes) para as zonas mais inóspitas do Distrito onde estiverem, em se tratando de funcionários públicos.
Esta nova versão de fanáticos inclui os especialistas em escrutinar tudo no seu semelhante. São voluntários. Sabem, como os crentes, que a “coroa” os aguarda. Mesmo que seja apenas uma hipótese. Mas fazem fé de tal sorte que ninguém os demove. Nos dias de hoje, com a campanha eleitoral encontraram uma nova área para escrutínio. Querem ver todo o funcionário na campanha do seu candidato. Assumem que é um imperativo nacional pertencer ou ostentar determinados símbolos (da sua semiologia).
Têm consciência da ilegalidade de seus actos por isso nunca dão as caras para confirmar, mas emitem ordens estranhas.
Vemos as Escolas abandonadas a partir das 11 horas para que os professores tenham espaço de ir a casa almoçar para que quando forem 14 horas engrossem as fileiras das ondas multicolores da sua campanha. E ai de quem ousar fazê-lo por outro Partido que não o que eles elegeram.
Vemos os carros alocados ao Estado circularem, já órfãos de chapa de matrícula para não provar nada, com “fazedores” da campanha do Partido de eleição pejando-os felizes da vida. Cada um mais preocupado que o vizinho em ser notado pelo seu Chefe ou pelos escrutinadores.
Vemos toda a estrutura da Polícia da República de Moçambique a assobiar para o lado (principalmente os reguladores de trânsito) e a não assinalar nenhuma contravenção aos motoristas dessas viaturas-fantasmas que passeiam a classe com elegância e garbo nas barbas de todos.
E mais: vi uma Senhora professora (boa entendedora da nova semiologia) a ligar para casa a fim de que o “empregado” fosse ao mercado pegar a vassoura que ela escolheu e pagou. Disse que não tinha onde meter a vassoura para que durante o trajecto para casa não fosse vista com o objecto nas mãos. Por quê, questionei e a resposta foi das mais absurdas: “Colega ainda não viu quem sai sempre com uma vassoura nas mãos na campanha? Já imaginou se “alguém” me vê com uma vassoura?
Perguntei se fazia o mesmo ao comprar um galo para a refeição ou milho. Apenas olhou para mim como quem diz: se eu matasse um galo todos os dias, como sou vizinha do Secretário do meu Bairro, acho que ganharia uma promoção.
Noutro dia, decorria um workshop que chamaram de indução para qualquer coisa pouco clara e, a menina que tinha sido encarregue de chamar atenção sobre os intervalos foi repreendida, às escondidas, apenas porque tendo chegado a hora do lanche pediu a palavra e anunciou:
“É o momento previsto para o nosso lanche. A sala já está preparada. Convinha nos dirigimos para lá agora porque a água quente está em chaleiras não eléctricas nem térmicas. Senhor Moderador, PODEMOS?”
A última palavra entornou o caldo. E como na sala havia muitos participantes cheios de bom humor e criatividade sublimaram o “podemos” e gerou-se um mal-estar na liderança da equipe o que valeu um raspanete, em surdina, à moça que fez o convite e sua imediata substituição da função. Não queriam sentir-se comprometidos com aquela insinuação, caso a informação chegasse aos Centros de Processamento de Dados.
A definição de semiologia, segundo alguns autores apaixonados por esta matéria despoletada por Ferdinand de Saussure indica que “ sendo uma matéria das ciências da linguagem, a semiologia é uma disciplina que estuda os processos pelos quais indivíduos e grupos atribuem significação aos signos à sua volta”. Para o caso dos fanáticos de Moçambique devíamos acrescentar que o mesmo signo (não linguístico) de acordo com os interesses do interpretador pode ter “diversas leituras”. É que somos tão versáteis que enquanto fumaça (numa cabana isolada no âmago do campo) tradicionalmente indicia fogo, presença de humanos; para nós é sinal da presença de caçadores furtivos preparando uma refeição.
Em diversas partes do chamado mundo civilizado como o nosso, ser funcionário público se resume a isso apenas, na nossa semiologia significa viver de joelhos debaixo do escrutínio do olho dos primeiros secretário local que, de acordo, com a sua empatia ou falta dela por nós pode tornar-nos a vida leve ou transformá-la num verdadeiro inferno. Que o diga meu sobrinho, Professor de História algures na Massinga, que só se descobriu que tinha sido nomeado Chefe da Secretaria daquela Escola por engano, apenas quando se recusou a fazer campanha por um determinado Partido e cujo áudio da conversa já deu duas voltas ao País.
Enfim. É este o País em que, ainda, vivemos. Mas quando Deus achar que já chegou o tempo, nenhuma Comissão nem Conselho irão substituir a vara de Arão representante da tribo de Levi¹, que vai ser a única a brotar dentre as deixadas na tenda que guarda as tábuas do testemunho.
¹ Levítico 17:1-13 (Ricardo Mapoissa -Cheringoma).