O Centro de Integridade Pública (CIP) revela os contornos, ainda desconhecidos, do recente ataque armado de insurgentes a uma embarcação russa que fazia trabalhos de investigação sobre recursos pesqueiros na costa de Cabo Delgado. A tripulação do navio pediu socorro à Marinha de Guerra de Moçambique, que prometeu o envio de dois helicópteros que nunca chegaram. Os investigadores acusam o Ministério da Defesa e o Instituto Nacional do Mar (INAMAR) de negligência por não terem emitido o alerta de possível ataque naquela região, mesmo depois de envio de pedido de parecer sobre a expedição.
Um cenário de terror em alto mar
Uma perseguição aterrorizante! O CIP teve, com exclusividade, imagens audiovisuais do recente ataque armado a um navio russo que fazia pesquisa na costa de Cabo Delgado. João, nome fictício, é investigador e fez parte da equipa dos mais de 40 ocupantes do navio que durante mais de 50 dias liderou uma pesquisa que começou na Ponta de Ouro, em Maputo, até Cabo Delgado. Conta que o navio estava parado a analisar os parâmetros ambientais da água, próximo ao arquipélago das Quirimbas, quando a tripulação – que se encontrava na cabine localizada num ponto alto do navio – notou a aproximação de uma embarcação, por volta das 15h00 do dia 10 de maio.
No primeiro momento, a equipa não desconfiou que se tratava de atacantes “porque tínhamos recebido informação de que haveria uma patrulha militar naquela zona”. Entretanto, as coisas mudaram de rumo quando a equipa se apercebeu das características dos ocupantes da embarcação, “estavam pessoas que pareciam crianças, jovens e adultos vestidos de roupas casuais, com máscaras, armas e catanas e se comunicavam em árabe”, descreveu.
Atacante teve um dos investigadores na mira, mas não disparou
A aproximação da embarcação deixou a tripulação russa nervosa e rapidamente emitiu o alerta que chegou aos ocupantes que estavam nos laboratórios e noutros compartimentos. Um dos investigadores esteve a mais ou menos 10 metros de distância dos atacantes e viu um deles a apontar-lhe uma arma. Foi este que alertou aos outros ocupantes, na sua maioria russos, que se encontravam no convés da embarcação sobre o perigo. Até hoje, os ocupantes procuram entender este episódio. Depois de o referido investigador dirigir-se ao encontro dos outros ocupantes e começar a fuga, os atacantes começaram com os disparos. Pelas perfurações, os ocupantes não têm dúvidas de que os atacantes estavam a disparar para matar. Foi por mera sorte que nenhum dos ocupantes foi atingido.
Vídeo mostra momento que um projéctil quase atinge membros da tripulação russa
Em apuros, a tripulação iniciou uma tentativa de despistar os atacantes, movimentando a embarcação mais para o alto mar. Os momentos que se seguiram foram de total pânico porque por se tratar de navio, leva algum tempo para ganhar velocidade. Um vídeo do circuito interno da embarcação mostra a preocupação da tripulação em controlar o movimento dos atacantes que, no momento já estavam em duas embarcações. Uma bala entrou pela cabine e atingiu um monitor. Por pouco não feriu ou matou um dos quatro russos no local.
Outro vídeo mostra os atacantes a perseguirem a embarcação, aos tiros, mesmo com o risco de naufrágio. “Eles estavam em embarcações a motor e mostraram que estavam dispostos a imobilizar a embarcação. Efectuaram vários disparos para danificar a embarcação”, recordou João.
Marinha de guerra teria prometido resgate através de dois helicópteros que nunca chegaram
Durante a fuga, a tripulação pediu auxílio à marinha de guerra. “Ligou-se para o capitão da marinha de Cabo Delgado que prometeu o envio de dois helicópteros, mas tal ajuda não apareceu”. Enquanto isso, os atacantes continuavam decididos em parar o navio, numa perseguição incessante que durou, estima-se, 20 minutos. Segundo João, os atacantes só desistiram devido à agressividade das ondas, pois havia risco de naufrágio.
Mesmo com o aparente abrandamento dos atacantes, o medo persistia. A noite que se seguiu foi de terror. “Ninguém dormiu. Estávamos todos nervosos, porque não sabíamos se eles tinham capacidade de nos localizar. A tripulação decidiu, por isso, desligar o radar para que o navio não fosse identificado. Este dispositivo só era ligado para controlar navios ao redor. Só ficámos tranquilos quando saímos da zona de Pemba”, lembrou.
Uma imagem mostra o navio em fuga. Nas proximidades, existiam outras embarcações sinalizadas a verde, mas nenhuma respondeu ao pedido de socorro. Entretanto, a grande frustração da equipa é em relação às autoridades de defesa e segurança. “Prometeram envio de ajuda de dois helicópteros que não chegaram. Já na manhã do dia seguinte, começamos a receber chamadas do capitão a procurar saber sobre a nossa localização. Mas até hoje não entendemos o abandono. Eles alegam que não enviaram ajuda porque o nosso navio não estava visível no radar, mas eles poderiam ter-nos contactado da mesma maneira que os contactamos”, entristeceu.
As acusações de negligência…
A equipa de pesquisa acusa o Instituto Nacional do Mar (INAMAR) e o Ministério da Defesa Nacional de desleixo. Refere que as duas entidades foram consultadas sobre o roteiro que seria seguido pelos investigadores, mas nada alertaram sobre os riscos de ataques naquela zona. Perante os factos, a equipa só encontra uma explicação. “Achamos que houve negligência do nosso Governo”.
Passados mais de dez dias após o ataque: Governo diz não ter detalhes sobre episódio
Desde o dia do ataque até a primeira reacção do Conselho de Ministros passaram-se dez dias, mas, mesmo assim, o Executivo disse não ter informações relevantes sobre o que aconteceu na costa de Cabo Delgado. Inocêncio Impissa, porta-voz do Governo, disse que a situação ainda estava a ser investigada.
O CIP sabe que a equipa de investigadores e a tripulação foram ouvidos no dia 17 de maio, data de sua chegada a Maputo, por uma equipa da Marinha de Guerra.
Em entrevista à STV, a representante da embaixada da Rússia em Moçambique confirmou o ataque e garantiu que a equipa de pesquisa finalizou os trabalhos com êxito. Esta versão não coincide com a que é apresentada pela equipa de pesquisa que garante que ainda faltavam por escalar dois pontos.
Contradições à parte. A suspeita é que os atacantes tenham saído de uma das ilhas (Tambuzi ou Vamizi), próximas do local do ataque pois Mocímboa da Praia fica atrás delas, isto é, muito mais distante. Na visão de João, os atacantes podem ter suspeitado que a embarcação estava avariada visto que, dada natureza do trabalho, a embarcação faz movimentos de idas e voltas às vezes com paragens.
À luz da Lei do Direito à Informação, o Centro de Integridade Pública enviou cartas para o Ministério da Defesa e para o INAMAR perguntando: Houve ou não negligência do Ministério da Defesa e do INAMAR neste caso? Que acções foram tomadas para socorrer a equipa? O que está a ser feito aferir as circunstâncias da ocorrência e prevenir futuros episódios? Existem ou não equipamentos aéreos para trabalhos de salvamento em alto mar? E qual é o tempo de resposta para situações de busca e salvamento? Entretanto, até ao fecho desta redacção, nenhuma entidade reagiu. (CIP).