Comunicar para Mudança

DEZ ANOS DEPOIS: Moçambique ainda não construiu as 1.200 casas pela dívida indiana

O Governo de Moçambique deverá pagar, nos próximos anos, ao Exim Bank da Índia, uma dívida milionária contraída em 2013 para a execução de um projecto habitacional cujas obras não chegaram a sair do papel devido a uma série de irregularidades financeiras e procedimentais, envolvendo a empresa contratada para executar a empreitada e a entidade responsável pelo projecto. Estão em causa 47 milhões de dólares norte-americanos emprestados aos moçambicanos por aquele banco para a construção de 1.200 casas nas províncias de Tete (400), Cabo Delgado (400) e Zambézia (400), num projecto liderado pelo Fundo para Fomento de Habitação (FFH).

 

FFH já perdeu cerca de USD 14 milhões em casas não construídas

O projecto de construção das 1.200 casas é resultado de um acordo de crédito financeiro no montante de USD 47 milhões, assinado entre o Governo moçambicano e o Governo indiano, através do Exim Bank, em Julho de 2013. O projecto tinha o objectivo de promover habitação para a população moçambicana, nas províncias de Tete, Cabo Delgado e Zambézia, 400 em cada uma das três províncias e foi incluído no Plano Económico e Social de 2016.

A contratação do empreiteiro para execução da obra aconteceu em finais de 2014. Foi lançado um concurso público internacional, para o efeito, do qual foi seleccionada a empresa indiana Ultra Home Constructions Ltda, do grupo Amrapali.

Após as formalidades do procurement público internacional, a 6 de Fevereiro de 2015 foi assinado um contrato entre o FFH e a Ultra Home Constructions Ltda, para a construção das 400 casas na província de Tete.

A 21 de Agosto de 2015, o FFH efectuou o primeiro pagamento adiantado para a Ultra Home Constructions, no valor de USD 13,922 milhões, equivalentes a 30% do financiamento, depois de a empresa apresentar uma garantia de pagamento adiantado e outra referente ao desempenho, ambas do International Trade Bank Ltda que, segundo declarou, estava sedeado na Itália.

Entretanto, após o primeiro adiantamento, as obras não tiveram início. Em resposta à pressão do Exim Bank, em Julho de 2016, a empresa comprometeu-se a iniciar a construção das casas para breve. Mas nunca o fez.

Diante do incumprimento contratual, foi criada, através de um despacho do então ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos, Carlos Bonete Martinho, uma equipa técnica interministerial composta por técnicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação (MINEC), Ministério das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos (MOPHRH), Ministério de Economia e Finanças (MEF) e FFH para: (i) rescindir os contratos de empreitada; (ii) suspender os contratos de consultoria; (iii) renegociar com o governo indiano por forma a executar o projecto com o valor remanescente de 70%; e (iv) intentar uma acção judicial contra os empreiteiros.

Em seguimento as recomendações do ministro, numa carta datada de 6 de Março de 2017 o FFH acusou a Ultra Home Constructions de fraude e rescindiu o contrato por incumprimento.

Segundo o que prevê o Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, a entidade contratante pode rescindir unilateralmente o contrato com fundamento no incumprimento, pela contratada, de cláusulas contratuais, e declarar perdida a seu favor a garantia definitiva prestada pela Contratada. No entanto, quando o FFH decidiu cobrar as garantias emitidas pela Ultra Home Constructions junto do International Trade Bank Ltda, deparou-se com mais um golpe, o banco em nome do qual estavam apresentadas as garantias pela construtora indiana nunca existiu.

A 6 de Fevereiro de 2017, o gerente geral assistente do Exim Bank, Trupti Mhatre, escreveu para o presidente da Ultra Home Constructions, Anil Kumar Sharma, afirmando que o Exim Bank não conseguiu rastrear a existência do International Trade Bank Ltda.

A falta de fiscalização prévia da informação fornecida pelos concorrentes, em particular estrangeiros, configura-se como um erro no processo de procurement, por não ter observado o preceituado no número 3 do artigo 27 do Regulamento de Contratação de Empreitada de Obras Públicas, Fornecimento de Bens e Prestação de Serviços ao Estado, sobre a necessidade de confirmar a veracidade do conteúdo dos documentos que têm que ver com a sua qualificação jurídica, económico-financeira, técnica e com a regularidade fiscal no País de origem, assim como os comprovativos da inexistência de pedidos de falência ou concordata em Moçambique e no País de origem.

Este facto resultou num prejuízo de pelo menos USD 13, 922 milhões. Este montante corresponde ao valor dos 30% que a empresa Ultra Home Constructions recebeu de adiantamento e não aos juros da dívida, que certamente vão elevar as perdas por conta desta má gestão do processo de procurement por parte do FFH.

 

Uma alternativa falhada: projecto restruturado de 1.200 para 900 casas

Após FFH rescindir o contrato com a Ultra Home Constructions, por incumprimento, e perder 30% do valor do financiamento, numa negociação com o Exim Bank, o projecto foi reajustado de 1.200 para 900 casas, correspondente a 300 para cada uma das três províncias. Foi igualmente autorizada a utilização dos remanescentes 70% do financiamento para a execução das 900 casas.

Em Outubro de 2017 foi iniciado o procurement público internacional para a contratação de empreitada para a construção das casas. Em Janeiro de 2018, o Exim Bank anunciou o resultado da pré-qualificação, tendo classificado 3 concorrentes das 9 propostas recebidas.

No Plano Económico e Social (PES) de 2019, o Governo propôs-se a construir, no âmbito do projecto restruturado, 528 casas, Tete (176), Cabo Delgado (176) e Zambézia (176). Entretanto, através do documento do Balanço do Plano Económico e Social de 2019, o Estado assumiu, mais uma vez, incumprimento da actividade, sob alegações de que as propostas do concurso eram financeiramente bastante elevadas, comprometendo a execução do número de casas planificadas em mais de dois terços. Portanto, estava em curso, em articulação com o Exim Bank e o governo da Índia, mais uma negociação com vista a ultrapassar a situação.

E, de lá a esta parte, o Governo não se pronunciou sobre o projecto e muito menos sobre as acções de responsabilização a fim de reaver o dinheiro perdido. Mas, não é só isso. São igualmente problemáticas as tentativas, falhadas, do Estado em retomar o projecto. O Governo não explica como é que, apesar de haver disponibilidade de fundos, o projecto não foi executado até ao momento.

 

Poderá pagar juros de mais de USD 18 milhões por casas que não foram construídas

Segundo consta do Relatório sobre a Conta Geral do Estado de 2013, elaborado pelo Tribunal Administrativo, o crédito no valor de USD 47 milhões, contraído junto ao Exim Bank da Índia para o projecto de construção de 1.200 casas, pressupõe um período de graça de 7 anos, depois do qual o Estado moçambicano deverá iniciar o processo de amortização da dívida, durante 22 anos, a uma taxa de juro anual de 1,75%, paga em dólar.

Segundo informação disponibilizada por uma fonte anónima, entrevistada no dia 12.02.2023, no Ministério de Economia e Finanças, está registado no Sistema CS-DRMS (plataforma usada para a gestão da dívida pública pelo MEF) o início, a 12 de novembro de 2023, do processo de amortização do empréstimo da linha de crédito financiado pelo Exim Bank para a construção de 1.200 casas.

Numa matemática básica, e baseada no cálculo de juros simples, foi possível concluir que: para o período de 22 anos, para o qual está prevista a maturidade da dívida, mediante o capital emprestado de USD 47 milhões, condicionada a taxa de juro anual de 1,75%, Moçambique deverá pagar ao Exim Bank pelo menos USD 18,095 milhões, o que significa mais de 1,1 mil milhões de meticais.

Juros simples: J= capital*taxa*tempo

Para um país com escassez de recursos, onde o peso do stock da dívida pública está acima dos limites de sustentabilidade de 60% do Produto Interno Bruto (PIB), contrair um empréstimo e desperdiçar os recursos não é apenas falta de responsabilidade e violação do princípio de boa gestão financeira dos recursos do Estado. Constitui uma negação ao desenvolvimento socioeconómico dos moçambicanos, sobre quem irão recair os efeitos negativos da dívida. Dentre os efeitos, salienta-se a contínua precariedade de serviços prioritários, como saúde, educação e água segura, bem como o fraco poder de aquisição de crédito financeiro, devido a altas de taxas de juros condicionadas pela pressão do Estado ao mercado doméstico, pois com o aumento da dívida pública tendem a existir restrições de acesso aos mercados financeiros internacionais.

 

Falhas no procurement: empresa contratada pelo FFH tinha histórico de fraudes no sector de construção e não era bem reputada

A empresa Ultra Home Constructions faz parte do Amrapali Group, uma firma indiana que trabalha no sector imobiliário e de construção, criada em 2003 por Anil Kumar Sharma. Em 2011, o Grupo Amrapali propôs a construção de cerca de 42 mil apartamentos residenciais em Noida e Grande Noida, na Índia, num prazo de 36 meses. Recebeu adiantamentos dos compradores dos imóveis, variando entre 40% a 100% do valor dos apartamentos. Contratos de compra e venda foram assinados, mas não conseguiu entregar os apartamentos e nem efectuar o reembolso do dinheiro aos clientes que tinham investido.

Em 2013, quando os clientes começaram a exigir as casas, o Tribunal da Corte da Índia iniciou uma investigação na empresa e constatou-se que o grupo Amrapali não havia concluído nenhum de seus projectos desde 2009.

Anil Kumar Sharma justificou o facto acusando a desaceleração do mercado imobiliário e a falta de fundos. No entanto, o mais espantoso foi a descoberta, pelo Tribunal da Corte, que apesar de não ter concluído algum projecto imobiliário de 2009 a 2015, os activos tangíveis da empresa tinham aumentado de INR 30,4 milhões, em 2011, para INR 299 milhões, em 2015, correspondente a um aumento de USD 364.669,05 para USD 3.586.680,05.

De acordo com a informação publicada em 12.01.2023, pelo jornal Scroll.in, desde 2014 o presidente do grupo, Anil Kamar Sharma, é investigado também pelo crime de assassinato do ex-secretário do instituto educacional Balika Vidyapeeth, Sharad Chandra. Chandra foi morto a tiros em sua residência, em Agosto de 2014.

Em Julho de 2019, o Tribunal da Corte da Índia ordenou o cancelamento do registo da empresa sob o direito imobiliário e transferiu os projectos pendentes do Amrapali Group para a National Buildings Constructions Corporation Limited (NBCC), uma empresa do sector público subordinada ao Ministério de Habitação e Assuntos Urbanos da Índia. Mas nada consta sobre o projecto “1.200 casas” em Moçambique. (CIP).

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