Uma cronologia sobre o desvio anunciado do Fundo Soberano de Moçambique

A controvérsia sobre o Fundo Soberano de Moçambique (FSM) vai muito para além do “desvio” de 33,65 milhões de dólares. Uma análise cruzada de dados dos relatórios do Tribunal Administrativo (RPCGE) e dos próprios Orçamentos do Estado (PESOE) revela um padrão sistémico de falta de transparência, dados contraditórios e projecções questionáveis que minam a confiança no instrumento que deveria ser o pilar da boa governação do sector.

A leitura da tabela revela três anomalias graves: primeiro, os dados de 2025 estão incompletos e só foram divulgados até Julho, apesar de já estarmos em Outubro (quase Novembro) e as transferências serem mensais; segundo, o facto de a informação de 2025 estar apenas na aba “Transparência” e não estar actualizada na secção “Receitas”, do site oficial do FSM, revela uma cultura de transparência selectiva e uma inconsistência institucional preocupante. A gestão pública de um fundo soberano deve garantir rastreabilidade e actualização centralizada e não dispersar dados de modo a dificultar o escrutínio público; terceiro, até Julho de 2025, Moçambique já havia acumulado um total de 217,9 milhões de dólares em receitas do gás. A ausência de relatórios trimestrais, anuais e de dados completos, expõe uma falha estrutural na transparência e na prestação de contas do Ministério da Economia e Finanças e do Banco de Moçambique. A omissão contradiz o regulamento do FSM, que impõe a publicação trimestral dos fluxos, e mina a credibilidade das instituições responsáveis pela gestão fiscal das receitas do gás.

Neste contexto, a afirmação da ministra das Finanças de que houve “desvio de aplicação” ou, como alegou a primeira-ministra, que as receitas foram “usadas porque a lei ainda não estava aprovada”, configura um uso irregular de recursos públicos fora do mandato do Fundo, agravado pela ausência de transparência sobre o destino dos valores. Entretanto em qualquer dos cenários o Governo deve explicações formais ao Parlamento e ao público. Assim sendo, urgente uma auditoria independente ao fluxo de receitas da conta transitória do FSM de modo a apurar responsabilidades institucionais.

Primeiras receitas e a narrativa do cofre fechado (2022 2023)

Enquanto a Lei do FSM era debatida, as primeiras receitas do gás começaram a chegar: 797,4 mil USD, em 2022, e 73,4 milhões de USD, em 2023, totalizando 74,17 milhões de USD até ao final de 2023.

Durante este período, a questão central era: “Onde está este dinheiro, se a lei do Fundo ainda não foi aprovada?”. A resposta oficial que foi sendo repetida por membros do Governo, incluindo o Governador do Banco de Moçambique, Rogério Zandamela, era invariavelmente a mesma: “o dinheiro estava a ser depositado e “guardado” numa conta transitória no Banco de Moçambique, intocado, à espera da aprovação da lei”.

O CIP levantou publicamente um sinal de alerta (indicador) da existência de um problema ou perigo potencial. Num contexto de graves dificuldades de liquidez do Estado e de uma crise da dívida pública, a narrativa de que o Governo resistiria à tentação de usar um dinheiro já disponível parecia pouco credível. Alertámos, na altura, que a falta de transparência e de relatórios sobre esta conta transitória poderia estar a esconder o uso indevido destes fundos para cobrir despesas correntes do Estado.

 

Confirmação do desvio (2024)

Em Janeiro de 2024, a Lei n.º 1/2024 que cria o Fundo Soberano de Moçambique é finalmente aprovada e promulgada. Logo no seu primeiro ano de vida, a gestão das receitas do Fundo revela-se problemática. O RPCGE de 2024, analisado à luz de dados mais completos do próprio Ministério da Economia e Finanças (MEF), confirmou os piores receios do CIP:

O TA, na sua auditoria (Capítulo VII, págs. VII-26 e VII-27), descobriu um “buraco” de 33,65 milhões de USD. Este número resulta da diferença entre o valor que o Governo declarou na CGE como receita acumulada do Fundo (164,69 milhões USD) e o valor que estava efectivamente depositado na Conta Transitória no Banco de Moçambique (131,04 milhões USD). O TA conclui que esta diferença refere se a receitas cobradas entre Dezembro de 2022 e Março de 2024 que não foram canalizadas para a conta do Fundo.

No seu comunicado, o MF não nega a utilização dos fundos. Pelo contrário, confirma-a, mas enquadra-a como uma alocação e não como um desvio. O MF afirma que estas receitas foram usadas para “fazer face às pressões de tesouraria” e para cobrir despesas como “salários e funcionamento das instituições”. Essencialmente, o Governo admite ter usado o dinheiro destinado à poupança para pagar as contas do dia-a-dia, precisamente para a prática que a Lei do FSM visa proibir.

 

Falta de transparência institucionalizada nos orçamentos de 2025 e 2026

A falta de transparência não é apenas um problema do passado. Ela contamina activamente a planificação do futuro do país.

O PESOE 2025 foi o primeiro orçamento a prever a utilização das receitas do FSM. Projectou uma receita total de 5.016,2 milhões de Meticais (cerca de 78,5M USD) para 2025. No entanto, os dados que agora conhecemos mostram que só nos primeiros sete meses do ano o Estado já tinha arrecadado 53,2 milhões de USD, ou seja, 68% da meta anual. O documento detalhava como ia gastar a sua parte (60%), mas, crucialmente, não mencionava o saldo acumulado dos anos anteriores (os 164,68 milhões de USD acumulados desde 2022). O Governo começou a gastar o dinheiro do Fundo sem nunca ter dito ao público qual era o valor total da poupança existente.

O PESOE 2026 projecta uma receita de 76,8 milhões de USD (equivalente a 4.905,7 milhões de Meticais), um valor inferior ao que já tinha sido arrecadado em 2024 (90,52 milhões de USD), como também é apenas marginalmente superior ao que foi arrecadado apenas nos primeiros sete meses de 2025 (53,2 milhões de USD). Deste montante, prevê-se que 46,1 milhões de USD (60%) sejam canalizados para o Orçamento do Estado e 30,7 milhões de USD (40%) para o Fundo Soberano. O Governo está a planificar o seu orçamento com base numa premissa de quebra de receitas da sua fonte mais promissora, um sinal de risco fiscal. Tal como o seu antecessor, o PESOE 2026 também omite completamente o saldo acumulado do Fundo. O cidadão que lê o orçamento de 2026 continua sem saber qual é a poupança total do país, sendo-lhe apenas mostrada a fatia que o Governo planifica gastar nesse ano.

A raiz de toda esta polémica é a ausência de transparência. O site oficial do Fundo Soberano de Moçambique, na sua secção “Relatório e Contas Anual”, deveria ser a fonte primária de transparência. No entanto, uma consulta feita na quinta-feira, 23 de Outubro de 2025, revela o seguinte: “NADA”. O site oficial do Fundo (https://fundosoberano.mz/relatorio-e-contas-anual/) está vazio. Os relatórios existentes encontram-se dispersos no site, uma prática que dificulta o acesso centralizado à informação. Esta falta de um repositório único e actualizado é, em si, uma violação dos princípios de transparência.

A análise integrada destes documentos oficiais revela um ciclo de gestão caracterizado por falta de transparência. No Passado (2022-2023), o Governo criou uma narrativa de “cofre guardado” que se provou falsa. No presente (análise de 2024), a gestão real das receitas, documentada pelo Tribunal Administrativo e confirmada pelo próprio Ministério das Finanças, revela a utilização de 33,65 milhões de dólares para cobrir despesas correntes, dando origem à polémica do “desvio”. No Futuro (Orçamentos 2025-2026), os documentos de planificação do Estado institucionalizam esta ausência de transparência, omitindo sistematicamente a informação mais importante de um fundo soberano, o seu saldo total.

Esta não é uma falha pontual. É uma estratégia deliberada de desinformação por omissão. Ao focar o debate público apenas na “fatia” anual que vai para o Orçamento, o Governo esconde a imagem completa, impedindo um escrutínio sério sobre a gestão da poupança de longo prazo do país.

O alerta do CIP de 2023 não era apenas uma preocupação, era uma previsão. A polémica actual e a opacidade dos orçamentos de 2025 e 2026 são a prova de que sem uma pressão contínua por transparência radical, o Fundo Soberano de Moçambique corre o risco de se tornar apenas mais um instrumento de gestão discricionária das finanças públicas, traindo o seu propósito fundamental. (CIP).


Discover more from Jornal Profundus

Subscribe to get the latest posts sent to your email.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Discover more from Jornal Profundus

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading